segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A Velha Verdadeira, a Velha Falsa e eu

Quando estava escrevendo sobre Velhice, me lembrei deste texto que estava na gaveta e foi um dos meus best sellers, embora eu não tenha vendido nada, mas foi um dos mais comentados pelo povo que lê o que eu escrevo ( aka família).

Na Sé

Para os que são de São Paulo, nem preciso explicar o que seja a Sé. Mas para os que não são-e são muitos os que lêem as minhas histórias- ai vai: a Sé é uma praça no centro de São Paulo, onde tem uma catedral linda que leva o mesmo nome e para muitos é considerado o coração de São Paulo. Pronto, falei.

Mas não é só isso: é na Sé que tem a Estação de Metrô da Sé(não diga?!). Na Estação da Sé, especificamente, encontram se as linhas vermelhas e azuis do metrô. Em resumo: ali é lotado de gente.

Então, imaginem, o que significa pegar um trem na Sé às 19h de uma sexta feira. É uma tarefa tão ingrata que numa determinada sexta feira, eu tive que esperar dois trens lotados saírem para poder entrar em um. E foi nesta determinada sexta feira que por um golpe de sorte(tão igual a ganhar na loteria), eu achei um lugar para sentar. E sentei.

O tal assento era cinza, destinado para pessoas idosas, gestantes, deficientes físicos ou mulheres com crianças de colo. Mas, como explica o anúncio, o lugar é livre na ausência de pessoas nestas condições. E como não havia ninguém por perto com estes requisitos, lá fui eu e sentei.
Antes da porta se fechar, uma senhora(vou usar este tratamento para não parecer mal educada) se dirige a mim:

- Saia daí.

- A senhora disse alguma coisa?, eu não tinha entendido o que ela disse.

- Sim, eu disse para você sair daí agora.

- A senhora quer que eu segure a sua bolsa?, perguntei sem entender o que acontecia.

- Não, que quero que você se levante porque este lugar é meu, respondeu em alto e bom som.

- Como assim seu?

- Meu, este lugar é reservado para idosos.

- Como é que é?, respondi ainda sem entender.

- Levanta logo que este lugar é meu, disse a senhora.

- O seu nome está escrito aqui?, perguntei com ar de criança petulante da quarta série.

- Não, mas eu sou idosa.

- E desde quando a senhora é idosa?, perguntei com o mesmo ar de criança petulante.
Como numa peça de teatro, as pessoas do trem olhavam para ver qual seria o próximo ato. O trem das 7 da noite. Na Sé.

- Mas não levanto mesmo, disse com o nariz empinado.

Neste momento entra uma verdadeira senhora. Não sou boa para ver a idade das pessoas, mas a primeira senhora, que passarei a chamar aqui de Falsa Velha, em nada parecia velha. A outra senhora chamarei de Velha Verdadeira.

A Velha Verdadeira era destas senhoras de cabelos grisalhos presos num coque e muitas rugas; tinha poucos dentes na boca e se vestia com saia comprida e blusa comprida. E portava um saco enorme. Ela, felizmente, entrou e ficou à minha frente.
- Para a senhora eu levanto, para esta ai, de jeito nenhum, disse já me levantando.
As pessoas do trem(trem das 7 da noite na Sé) se entreolharam. Aquele trem estava repleto de homens, a maioria deles com aparência de trabalhadores cansados após uma semana de labuta. E o engraçado que mesmo sendo homens os homens nunca deixam de ser moleques e se comportam como moleques numa sala de aula, vaiando, fazendo “Uhu” ou rindo e emendando piadinhas. Os homens que estavam no trem das 7h da noite e que já não estava mais na Sé começaram a zoar, como dizem os paulistas, da Falsa Velha após o meu ato.
A Falsa Velha, não se dando por satisfeita por ter perdido lugar para a Velha Verdadeira, começa a revirar a bolsa:

- Vou mostrar para vocês que sou idosa, diz enquanto procura algum documento que comprove sua idade. E acha e me mostra:

- Nem adianta me mostrar porque eu não quero ver, digo enquanto como aquelas pipocas doces que vem no saco cor de rosa.

Descontente com a minha atitude, ela mostra para a Verdadeira Senhora que responde:
- Não fica mostrando que ninguém aqui é carteiro, fala assim bem seca.

Os homens, que como disse, não deixam de ser moleques começam a rir alto e dizer coisas como “Tome” e “Podia dormir sem esta”.

Eu, que já perdi o meu tom de menina abusada de primário, começo a explicar que ela, a Falsa Velha, não pode sair por ai falando assim com as pessoas. E se eu estivesse grávida? Ou não tivesse uma perna? Ou uma doença terminal? Em dois segundos ela não tinha como ter visto algo do gênero e logo o lugar também seria meu por direito adquirido.

- Mas você não está grávida e nem doente, retrucou a Falsa Velha.

- Mas ela trabalhou um dia inteiro e está cansada tanto quanto você, respondeu a Velha Verdadeira, interferindo em minha defesa. E com esta barriga, continuou, acho que ela está prenha sim.

- Não, é só gordura mesmo, disse enquanto comia as pipocas. E como comia sem parar, ela não duvidou.
Os homens/moleques se deliciavam com a cena e riam, riam, riam.

Foi quando vagou um lugar, que não era para idosos, e a Falsa Velha correu para sentar. Estava obstinada em sentar, a Falsa Velha. Mas, durante a corrida, ela bateu a bolsa com tudo no rosto de uma moça que estava sentada.
Acho que a Velha Verdadeira deveria ser advogada, não é possível: mal a Falsa Velha sentou e ela começou a discursar como um rábula de outros tempos:
- Você não pode sair por ai, batendo a bolsa as cara das pessoas. Coitada da moça, que trabalhou o dia inteiro e ainda leva uma bolsada na cara esta hora da noite?, falava em alto e bom som. Os homens/moleques riam e pararam quando ela continuou seu discurso:

- Agora você, nova, toda pintada deste jeito- nem eu tinha reparado na maquiagem da Falsa Velha- vem com esta pose de senhora, mas de senhora não tem nada. Nem eu que tenho câncer e faço quimioterapia fico resmungando deste jeito. Se a senhora tem problemas, fique em casa, não saia descontando nos outros. Sua sorte é que hoje estou de bom humor, mas, se não tivesse, você se mudaria imediatamente desta cidade, ameaçou a Velha Verdadeira. Não sei se ela sabia que São Paulo tem 18 milhões de habitantes e elas nunca mais se cruzariam ou se a Velha Verdadeira era tão poderosa que seria capaz de esmagalhar a Falsa Velha deste jeito.
Os homens/moleques começam a fazer baderna: riem, dizem que a Velha Verdadeira está certa, zoam a Falsa Velha. Uma moça diz em alto e bom som que “Boa Educação não tem idade” e um dos homens/moleques(acho que na escola ele deveria ser o inferno das professoras) me cumprimenta e diz que gostou do que eu disse, que eu sai da cena “com classe”. Neste ponto da viagem, todos são atores, todos falam, todos palpitam, menos a Falsa Velha, naturalmente.

E no palco daquele trem, que já não estava mais na Sé, eu me retiro de cena: é a minha estação, o Tatuapé e eu preciso descer. Vou embora, não sem antes ganhar a benção da Velha Verdadeira, que me deseja boa sorte na vida e fala um singelo “Vá com Deus, minha filha”. Vou, minha senhora, vou...

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