quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Aos cuidados de Ernesto

Pois é Ernesto, a festa acabou. Pensei em tantas maneiras de começar esta carta porque eu tenho muito para lhe falar. Infelizmente, como não há nada de bom para dizer, enrolei para começar. E vi que não tinha nada melhor do que "a festa acabou" assim você não começa a ler pensando que é uma coisa e na verdade, é outra.

A verdade Ernesto, é que os bons ares de lá não estão mais tão bons assim. Ou pelo menos, não tão bem quanto eu pensava. Cheguei naquele local que um dia foi um antigo porto procurando pela Europa. Borges era apaixonado por Genève, tanto que ele escolheu lá para morrer. Demorei para entender sua paixão por Genève até o dia que fui à Recoleta e vi aquelas ruas arborizadas, aquela graça, cervejas em elegantes taças, tal e qual em Genève. O Puerto Madeiro não deve a nada a um dos nossos Quais. Mas é só isso mesmo que vi de Europa.

Vi, ali mesmo na Recoleta, no famoso cemitério que atrai turistas do mundo inteiro, nossos hermanos bolivianos e colombianos reformando as lápides e outras mansões fúnebres. Sim, Ernesto, nossos irmãos, aqueles que têm em suas veias abertas o mesmo sangue da América Latina hoje são os funcionários de seus hermanos. É algo como nos Estados Unidos, onde a América do Sul nada mais é do que exportador de mão de obra, com a diferença que sim, nós estamos na América do Sul. E nossos vizinhos nada mais são do que faxineiros, copeiros, pedreiros, enfim, aqueles que fazem o serviço mais básico.

Foi ali naquela cidade que eu achava tão rica, no país que tem um dos maiores PIBs per capita do continente que encontrei, pasme Ernesto, crianças nas ruas. Os chicos, ou niños, como vocês chamam, ali, pedindo esmolas. Nisso, tenho que admitir, vocês são mais democráticos: há loirinhos, com a pele bem branquinha, são típicos Olivers Twists junto com a versão infantil dos mesmos que estavam no cemitério, os bolivianos, paraguaios, colombianos, todos pedindo dinheiro para comer.

Pois é, Ernesto, a igualdade por qual você tanto lutou, a união do continente que você tanto defendeu não funciona nas ruas de sua capital. Talvez existam em acordos malgrados entre os diplomatas, que assinaram qualquer coisa depois de muitas taças de vinho. Mas, ali, de bom mesmo, Buenos Aires não tem nada, pelo menos no que diz respeito à pobreza e a dignidade.

Mas o que mais me espantou, Ernesto, foi ver aquele seu velho retrato não apenas nas paredes de bares de La Boca e sim em todas as lojas de souvenirs. Pois é, Ernesto, hoje você alimenta, em seu próprio país, o sistema que um dia você tanto criticou. Vi sua imagem em ímãs de geladeira, bottons, cartões postais, canecas e até cuecas. Como lhe disse, Ernesto, a festa acabou. Sinto muito em lhe escrever esta carta, endereçada à eternidade, apenas para contar isso. Mas acho sinceramente que você deveria saber do que estamos fazendo com nossa América enquanto você faz não sei o quê ai no céu.

Minhas ternas e sempre eternas saudações,

Ivy

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