quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Tim Tim

"Para alguns, a vida sepulta mais que a morte." Mia Couto

Aquela era uma quarta-feira como tantas outras quartas-feiras. Meu Deus, qual será o dia mais ingrato da semana? Segunda, que é o começo? Domingo por que é o fim? Quarta, por que é o meio? Ou quinta, quando se sabe que ainda falta a sexta para chegar o final de semana? Aquela quarta-feira, porém, seria como as outras: Ronaldo iria trabalhar, como fazia todos os dias, de segunda a sábado, na sua repartição pública.

Andou lentamente as quatro quadras que separavam seu trabalho de sua casa, como se os passos poucos e lentos fizessem a quarta-feira passar mais râpido. Lembrou de que teria que comprar leite na volta e pensou em como deveria ser boa a vida dos ricos, que não trabalham nunca, quanto mais numa quarta-feira como aquela.

Chegou ao seu destino pensando que se fosse rico, estaria bebendo todas as cervejas que pudesse naquela quarta-feira. Que tomaria sol em sua piscina e que daria um cartão de crédito para sua mulher e sua filha fazerem compras no shopping. Mas Ronaldo não era- e tinha que trabalhar, uma vez que estava na porta do seu emprego.

- Vai entrar ou está estudando arquitetura?, uma voz rouca soou atrás.
- Como?
- Vai entrar ou você está estudando arquitetura e esta porta é sua lição de casa?
- Perdão seu Rodolfo, estou entrando.

Rodolfo era seu chefe. Tinha um coração de ouro, mas ainda era chefe. E chefes são sempre chefes. Os dois entraram e trabalharam. Deveria ser umas 11h quando o carteiro chegou, não com uma carta, mas uma notícia na mão: Diana, a contadora do escritório que ficava do outro lado da rua, morreu. Aos 27 anos. Derrame.

Todos ficaram chocados: como a morte pode ser tão estúpida ao levar dos braços da vida uma menina de 27 anos? Tá certo que ela era chata, mal humorada e nada dócil, muito pelo contrário, era estúpida e nunca ajudava ninguém em absolutamente nada. Nem na quermesse ela ia. Mas precisava morrer, assim de uma hora para outra?

Aquela quarta-feira deixou de ser mais uma quarta-feira. Parecia quarta-feira de cinzas. Todos tristes, olhos baixos, um silêncio que era interrompido por poucas histórias da recém falecida. Como num estalo, seu Rodolfo tirou do bolso várias notas de dinheiro. Chamou Thomaz, novo funcionário da repartição.

- Meu filho, vai ali no bar e compra um engradado da melhor cerveja que eles tiverem. Da mais gelada possível, é claro. Vamos comemorar.

Todos se entreolharam com surpresa. Seu Rodolfo era um bom homem, bom filho, bom marido, bom patrão, bom pai. Aquele era ato de extrema crueldade, comemorar a morte assim de uma defunta chata. Não tinha nada a ver com ele aquela atitude. Seu Rodolfo sorria o sorriso mais lindo e puro da vida, alegria que transbordava por seu bigode tosco e sua barba mal feita. Teria ele pirado? Porque os loucos riem como sádicos e não como seres felizes como ele estava.

Em menos de cinco minutos a cerveja chegou. Seu Rodolfo brincou com o menino, dizendo que para comprar cerveja ele era rápido, pena que aquele não poderia ser seu cargo ali. E chamou todos a sua volta.

- Vamos gente, vamos comemorar. Peguem seus copos na cozinha.

Constrangidos, os funcionários pegaram os copos e o encheram do líquido estupidamente gelado. Não tinham tristeza no peito porque mal conheciam a falecida, mas não havia motivo assim para comemorar. Pobre Diana, tão nova, tão moça, tinha a vida pela frente e a morte a encontrou por trás. Mas todos obedeceram, afinal, ele era o chefe.

- Um brinde, a voz rouca puxou.

Ronaldo não era medroso. Sem delongas, perguntou:

- Um brinde a quê, seu Rodolfo?

- À vida, meu querido. Ela é curta demais e a gente tem mais é que viver.

Aliviados, os treze funcionários levantaram seus copos e brindaram à vida. Beberam e trabalharam, trabalharam e beberam aquela quarta-feira inteira, que, aquele momento, não tinha mais nada de quarta-feira de cinzas, parecia começo de carnaval.

Feliz, Ronaldo voltou para casa a passos largos. O trajeto que de manhã era tão longo ficou pequeno. O caminho só serviu para que ele pensasse que de nada adiantava o dinheiro na vida quando nela existe a morte, que pode tirá-la do shopping, da piscina e de qualquer outro ambiente luxuoso. Pensou que não fazia muito sentido ser rico, porque a vida era ali e agora, com todos aqueles momentos que nos fazem agradecer e celebrar por estarmos vivos. Abraçou a filha, beijou a mulher quando em casa chegou. Feliz, ele viveu ali a vida sem se preocupar com nada. E esqueceu o leite.

"Eu bebo sim e estou vivendo. Tem gente que não bebe e está morrendo."

Um comentário:

Nirtu disse...

TOTALMENTE, TOTALMENTE, TOTALMENTE EXCELENTE!!!!
DEMAIS, DEMAIS, MUITO BOM!